Cidade Perdida
Isabel Sanson Portella
Como é realmente a cidade sob esse carregado invólucro de símbolos, o que contém e o
que esconde, é impossível saber. (Calvino, Italo. Cidades invisíveis) Pedro Meyer reúne para a exposição Cidade Perdida obras que resultaram de pesquisa iniciada na Gamboa em 2014 e que relacionam tráfico de escravizados, genealogia familiar e desenvolvimento urbano carioca. Os diversos mapas apresentados podem indicar uma localização precisa geograficamente como também podem ser uma reconstrução gráfica de arquiteturas perdidas, soterradas e apagadas. Cidades perdidas são localizadas porque deixam indícios da urbanização existente. Assim como campos de extermínio e cemitérios deixam traços que não puderam ser apagados pelo tempo ou vontade.
Ao se debruçar sobre questões que envolvem tanto Treblinka, campo de extermínio nazista, quanto o cemitério dos Pretos Novos, Meyer se deparou com relações de dor, sofrimento, representação, religiosidade e ritos que aproximam esses dois extremos. A morte está sempre presente, assim como a opressão, a brutalidade e as semelhanças nas estratégias de extermínio. A violência física e moral funcionava como exemplo. Susan Sontag e Julio Cesar Pereira indicaram abordagens, que embora já conhecidas, abriram para o artista novos espaços para pensar a dor do outro, a banalidade da dor exposta no coletivo, a dor maior advinda do desrespeito cultural a um povo. Os rituais, judaicos em Treblinka e africanos no Brasil, em relação à morte, foram violados. Depois, soterrados numa tentativa de apagamento que somente a recriação através dos mapas e relatos pode trazer à memória. O mapa é enigma e abstração, gera dúvidas e possibilita uma nova leitura. E principalmente é intermediário da violência. O que está por trás dos desenhos é terrível e sua representação precisa ser demarcada. Muito além dos traços e tinta com que foram grafados, nos mapas permanece o cheiro da morte, o arame farpado, o cativeiro, a exploração e a submissão. Certamente a formulação dos projetos urbanos de nossa cidade procurava um distanciamento do centro poluído, desse cenário que incomodava o olhar.
Assim como os residentes das cercanias de Treblinka que reclamavam dos odores provenientes da morte, os residentes do centro do Rio de Janeiro, as elites locais, foram gradativamente se afastando em busca de ares melhores. O que restou foi essa cidade perdida, sepultada para ser esquecida. Essa é a cidade, seus segredos e enigmas, que podem, talvez, ser desvendados pelo olhar amoroso de quem a decifrar.
rio de janeiro, 2019
exhibition cidade perdida